Consciência Negra
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Brasília (DF) — O Mês da Consciência Negra de 2025 recoloca o Brasil diante de um espelho que reflete muito mais do que a memória. Ao promover quarenta ações sob o tema “Patrimônio e Reparação”, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tenta associar a valorização cultural ao desenvolvimento social, numa tentativa de transformar reconhecimento simbólico em política pública e estrutura econômica.

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O esforço ocorre num país em que 56% da população se declara negra ou parda, segundo a PNAD Contínua do IBGE (2023), mas onde a desigualdade continua atravessando as estatísticas e o cotidiano.

Isso pode ser visto nos dados do Atlas da Cultura Brasileira (2022) que mostra que, entre 2013 e 2022, menos de 1% dos recursos federais em preservação patrimonial foi destinado a bens de matriz africana.

O contraste entre o peso demográfico e a ausência orçamentária ilustra uma questão que ultrapassa o campo cultural: a população negra sustenta a base da economia, mas raramente participa da formulação das políticas que definem quem se beneficia dela.

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De acordo com a historiadora Giovana Xavier, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fundadora do projeto PretaLab, o problema não é apenas de reconhecimento, mas de estrutura.

“A desigualdade racial não se combate apenas com datas, mas com redistribuição de poder e investimento”, afirmou à Revista Serrote em 2023. O economista e ativista Hélio Santos, presidente do Instituto Brasileiro da Diversidade, reforça o mesmo raciocínio.

Em entrevista à TV Cultura em 2022, ele afirmou que “a reparação verdadeira é redistributiva — passa por orçamento, crédito e acesso a poder”. A frase resume o sentido prático da reparação e conecta-se ao que os números já evidenciam: a desigualdade não é apenas simbólica, mas financeira.

Dados da Organização Internacional do Trabalho (2024) mostram que a economia criativa ligada a manifestações afrodescendentes movimenta cerca de quarenta bilhões de reais por ano no Brasil, enquanto levantamento da Firjan (2022) indica que menos de 20% dos empreendedores culturais negros têm acesso ao crédito formal.

Consciência Negra
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A disparidade revela que a cultura afro-brasileira, embora reconhecida como símbolo nacional, ainda é tratada como economia informal. Sem financiamento, segurança jurídica e presença em cadeias produtivas, boa parte do patrimônio imaterial continua à margem das políticas de desenvolvimento.

Para a coordenadora do Comitê Permanente para Preservação do Patrimônio Cultural de Matriz Africana (Copmaf), Aretha Lecir Rodrigues dos Santos, é preciso fazer com que a política pública alcance as práticas que já existem nos territórios.

“Quando articulamos políticas públicas com as práticas que acontecem nos territórios, asseguramos e fortalecemos o direito das populações afro-brasileiras”, afirmou à Agência Gov.

O comitê, criado em 2023 a partir da mobilização do Coletivo de Servidores Negros do Iphan, atua para consolidar uma agenda permanente de reparação e proteção de bens culturais afro-brasileiros — não apenas por meio do tombamento, mas com instrumentos de fomento e crédito voltados à sustentabilidade econômica dessas comunidades.

A relação entre cultura e economia também aparece nos dados do Ipea, por meio do relatório Retrato das Desigualdades de 2024, que mostra que pessoas negras ainda ganham em média 36% menos que pessoas brancas e ocupam apenas 29% dos cargos de direção e gerência no país.

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Essa distância econômica é reflexo de um processo histórico de exclusão que se manifesta também na forma como o Estado investe.

O antropólogo Kabengele Munanga, professor emérito da USP, disse à CartaCapital em 2023 que “o negro foi excluído não apenas das riquezas materiais, mas da própria história”, e que a cidadania, sem memória e sem acesso a recursos, “é uma promessa vazia”.

Ao recolocar a reparação no centro das discussões, o Iphan busca transformar o que antes era celebração simbólica em política de Estado. A proposta não elimina a desigualdade estrutural, mas redefine o campo em que ela é disputada: o da economia e da memória como dimensões complementares do mesmo projeto nacional.

O antropólogo Luiz Antonio Simas escreveu no El País Brasil em 2023 que “a cultura afro-brasileira é o que mantém o Brasil de pé, porque é ela que organiza a vida onde o Estado não chega”.

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A frase sintetiza o desafio que as políticas públicas precisam enfrentar: reconhecer que o patrimônio negro não é apenas passado — é infraestrutura viva da sociedade brasileira.

Nesse sentido, o Mês da Consciência Negra não se limita a homenagens. É um teste de coerência nacional. Celebrar Zumbi dos Palmares exige mais do que discursos; exige orçamento, crédito, segurança jurídica e presença institucional.

Ao discutir patrimônio e reparação, o Brasil discute também o modelo de país que quer construir — um em que a cultura negra continue sustentando a nação à margem, ou um em que ela ocupe o centro das decisões e dos recursos. Reparar, afinal, não é corrigir o passado: é garantir que o futuro não repita os mesmos erros.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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