Estado Mínimo
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Na última semana de outubro, o ministro da Fazenda Fernando Haddad anunciou que as medidas de controle de gastos seriam incorporadas a um projeto já em tramitação no Congresso. O gesto, embora técnico, resume a encruzilhada de um governo que busca conciliar estabilidade fiscal com ambição desenvolvimentista.

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Fernando Haddad, talvez o ministro mais preparado e propositivo de sua geração, tenta reabilitar o Estado como agente de confiança sem ceder à velha tentação do descontrole. Mas a engrenagem que o cerca é mais antiga que o próprio governo: o país vive há décadas sob a lógica da escassez institucionalizada, em que a prudência virou sinônimo de sobrevivência.

O orçamento de 2026 é a tradução dessa contradição. Prevê um superávit primário modesto, de 0,25% do PIB, e o menor investimento público da série histórica, próximo de 0,6%. Não por falta de vontade, mas por falta de espaço.

O Estado brasileiro se tornou um organismo que respira com dificuldade: cada centavo é disputado, cada política precisa caber no limite da regra.

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O equilíbrio das contas é hoje mais um requisito de credibilidade do que uma escolha estratégica. Em um cenário de Congresso fragmentado e sistema tributário regressivo, o investimento em desenvolvimento compete com as amarras do curto prazo.

A ideologia do Estado mínimo, que nos anos 1990 se impôs como discurso de modernização, sobreviveu mesmo após sua falência empírica. Foi absorvida pelas instituições e transformada em reflexo automático: conter antes de agir, provar antes de planejar.

Mesmo governos que se opõem a ela — e o atual, em muitos aspectos, o faz — acabam governando dentro de seus contornos. A austeridade deixou de ser um debate e se tornou uma infraestrutura política. É o ambiente onde se governa, não mais uma escolha de quem governa.

O resultado é um Estado que quer investir, mas não pode; que reconhece o papel público no desenvolvimento, mas encontra barreiras fiscais e políticas para exercê-lo. O país aprendeu a chamar de responsabilidade o que é, na verdade, resignação.

O equilíbrio orçamentário é celebrado mesmo quando alcançado à custa da paralisia produtiva. A cada ajuste, promete-se o crescimento futuro; a cada ciclo de contenção, posterga-se o investimento que o tornaria possível.

Estado Mínimo
Foto: Lula Marques/ Agência Braasil.

A lição de Keynes, escrita em meio à Grande Depressão, permanece ignorada. Ele afirmava que não há virtude em poupar quando o problema é a falta de demanda. O investimento público é o primeiro passo do crescimento, não o último.

O Brasil, porém, virou especialista em inverter essa lógica. Passou a esperar que a confiança do mercado substitua o papel do Estado — e o resultado é o mesmo há trinta anos: crescimento intermitente, desigualdade estrutural, serviços públicos em deterioração.

O diagnóstico está nos números. Em setembro, o país criou 213 mil empregos formais, 15,6% a menos que no mesmo mês de 2024. Há geração de vagas, mas em ritmo decrescente e com baixa produtividade. A economia, mesmo sob políticas de estímulo, patina porque o Estado perdeu densidade.

A infraestrutura envelhece, a indústria perde complexidade e a agenda do crescimento se resume a incentivos setoriais dispersos. Nenhum país se desenvolveu apostando no espontaneísmo do mercado — e tampouco resistirá apostando apenas em metas fiscais.

A responsabilidade fiscal é indispensável, mas ela deve servir à política de desenvolvimento, não substituí-la. A contenção é meio, não fim. O atual governo parece compreender isso: busca reorientar o Estado para o investimento em transição energética, infraestrutura, educação e inclusão social.

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Mas enfrenta um sistema que premia o imediatismo e pune o planejamento. A máquina pública foi moldada por décadas de ajuste e dependência parlamentar, e sua reconstrução exigirá mais do que boas intenções — exigirá tempo, política e coragem para redefinir prioridades.

O problema não é Haddad, tampouco o governo. O problema é o Brasil que normalizou a falta como virtude. Um país que gasta pouco, arrecada mal e cobra caro de quem mais precisa. Um Estado que se tornou mínimo não por ideologia, mas por inanição: desidratado, fragmentado, prisioneiro de um modelo que confunde eficiência com abstinência.

Enquanto o debate se resume a cortar ou não cortar, o país real segue estagnado: obras paradas, escolas sucateadas, hospitais sobrecarregados.

E, paradoxalmente, é justamente esse Estado que se quer “enxuto” que continua grande onde não deveria: no custo da dívida, na burocracia redundante, na dependência política. O que encolheu foi a capacidade de pensar grande.

O Estado mínimo brasileiro é o espelho de sua própria rendição. Rende-se à escassez, à fragmentação e ao medo de arriscar. O desafio deste governo — e de qualquer outro que o suceda — é romper com essa pedagogia da contenção e resgatar a ideia de que planejar é um ato político, não contábil.

O país não precisa gastar mais por instinto, mas investir melhor por convicção. E para isso, é preciso recuperar o que a austeridade destruiu: a fé pública de que o Estado pode, sim, ser o motor de um projeto de nação.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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