Buenos Aires — As declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, condicionando um pacote de ajuda financeira à vitória eleitoral do aliado argentino Javier Milei, provocaram uma onda de críticas e reações em todo o continente. O episódio, interpretado como interferência direta em um pleito nacional, reabre o debate sobre os limites da influência econômica norte-americana e sobre o custo político de uma dependência financeira que a América Latina ainda não superou.
Durante coletiva na Casa Branca, Trump afirmou que o apoio dos Estados Unidos — estimado em até US$ 40 bilhões, somando um swap cambial e uma linha de crédito emergencial — dependeria do resultado das eleições legislativas argentinas.
“Se eles não fizerem isso, nós não estaremos por aqui por muito tempo”, disse o presidente norte-americano ao responder a repórteres após o encontro com Milei. A fala gerou protestos imediatos da oposição peronista e dominou as redes sociais sob a hashtag #PatriaOColonia, lema histórico contra ingerências externas.
O ex-ministro da Defesa Jorge Taiana, candidato peronista em Buenos Aires, pediu em postagem na rede X que Trump “pare de extorquir o povo argentino”.
A ex-presidenta Cristina Kirchner, em prisão domiciliar por corrupção, ecoou a crítica ao afirmar em gravação divulgada a apoiadores que “a economia argentina está sendo administrada com controle remoto pelo Tesouro dos Estados Unidos”.
Para analistas políticos, a fala de Trump rompeu o protocolo diplomático e expôs uma nova etapa da relação entre Washington e seus aliados na região. “O que está em jogo não é apenas um empréstimo, mas a autonomia de um país que já é o maior devedor do FMI”, avaliou a cientista política Lucía Vincent, da Universidade Nacional de San Martín, em entrevista ao jornal Página/12.
O pacote norte-americano inclui um swap de US$ 20 bilhões já assinado e a possibilidade de um crédito adicional de igual valor. O objetivo seria garantir liquidez ao Banco Central argentino e conter a desvalorização do peso, que atingiu novo recorde negativo nas últimas semanas.
Mas o gesto político de Trump, apresentado como “salvação econômica”, reforçou percepções históricas de subordinação.

Segundo o economista Pablo Vommaro, diretor do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), “a cooperação norte-americana raramente é neutra — ela está vinculada a objetivos geopolíticos, como o controle do lítio e a contenção da influência chinesa na região”.
A leitura é compartilhada por setores da oposição, que veem na aproximação de Milei com Trump uma reedição das alianças automáticas da década de 1990.
Pesquisas recentes indicam que o discurso teve impacto negativo na opinião pública. Levantamento do instituto Zuban-Córdoba mostra que 60% dos argentinos têm imagem desfavorável de Trump, e outro da Zentrix revela que 58% rejeitam ajuda financeira norte-americana. Entre eleitores indecisos, a percepção de “pressão externa” cresceu, segundo o estudo.
Mesmo assim, o governo Milei tenta capitalizar a parceria. Em nota divulgada pelo Ministério da Economia, o consultor Ramiro Castiñeira afirmou que o acordo “fortalece a confiança dos mercados e reduz o risco-país”.
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A Casa Branca, por sua vez, tentou amenizar o tom: o secretário do Tesouro, Scott Bessent, declarou em entrevista à Reuters que o apoio depende de “boas políticas econômicas, e não necessariamente do resultado eleitoral”.
O episódio, porém, foi interpretado na região como um alerta. Em países que ainda enfrentam crises fiscais e dependem de organismos multilaterais, o precedente reacende o temor de que a ajuda internacional possa se converter em ferramenta de alinhamento político.
No caso argentino, a interferência verbal já teve efeito concreto: o mercado reagiu com volatilidade e o peso perdeu valor nos dois dias seguintes à fala de Trump.
Historicamente, o peronismo construiu sua identidade contra a influência externa. Hoje, o lema “pátria ou colônia” volta a ecoar nas ruas de Buenos Aires, enquanto o país tenta equilibrar austeridade, dívida e soberania.
Entre a necessidade de dólares e o custo político de recebê-los, a Argentina se vê, mais uma vez, dividida entre a sobrevivência econômica e a autonomia nacional — uma equação que, nas Américas, raramente é neutra.










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