Brasília — A nova crise de endividamento que atinge países da África, Ásia e América Latina ameaça paralisar investimentos em infraestrutura, emprego e serviços públicos. Com o aumento dos juros internacionais, governos de baixa e média renda destinam hoje até 45% de suas receitas ao pagamento de dívidas, segundo a organização Development Finance International (DFI). Em alguns casos, como Etiópia, Zâmbia e Chade, essa proporção chega a 70%.
O relatório foi divulgado durante a reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, em Washington. A entidade alerta que os países do Sul Global estão gastando três vezes mais com juros do que com educação e quatro vezes mais do que com saúde.
“É uma crise de desenvolvimento, porque impede avanços sociais, e também de democracia, porque governos eleitos enfrentam limites que não controlam”, afirmou Matthew Martin, diretor da DFI.
A falta de coordenação entre credores e instituições multilaterais tem alongado negociações de reestruturação. No caso da Etiópia, credores privados ameaçam processar o governo em tribunais britânicos após o colapso de um acordo de US$ 1 bilhão.
Situação semelhante ocorre em Zâmbia e Sudão do Sul, onde bancos e fundos de investimento resistem a aceitar perdas. Para a economista Patricia Miranda, diretora de advocacy global da rede latino-americana Latindadd, o problema é estrutural.
“O FMI considera sustentável uma dívida que para a população é insustentável. Se a gente não tem água limpa, saúde, comida e escola, que sustentabilidade é essa?”, questiona.
A organização defende limitar os pagamentos a 10% da receita dos países de baixa renda, liberando espaço para investimentos em combate à pobreza e adaptação climática.
A proposta é apoiada por grupos europeus como a Debt Justice. Seu diretor de políticas, Tim Jones, afirma que “a demora em reestruturar as dívidas mantém milhões de pessoas presas em ciclos de crise e desemprego”. Ele defende que países credores aprovem legislação impedindo fundos privados de processar governos durante negociações.

Apesar de reconhecerem o problema, os líderes do G20 não apresentaram medidas concretas na declaração ministerial assinada na última semana. A proposta de ampliar o mandato do FMI para socorrer economias em crise foi bloqueada por divergências internas, especialmente entre China, EUA e Europa.
Para analistas, a crise da dívida expõe os limites do modelo financeiro internacional. “A arquitetura atual foi feita para estabilizar os mercados, não para proteger o desenvolvimento”, avalia José Luis Machinea, ex-secretário executivo da Cepal.
Segundo ele, sem uma reforma que amplie o espaço fiscal dos países em desenvolvimento, “a transição verde e digital será concentrada no Norte”.
No Brasil e na América Latina, o tema tem repercussão direta. Países da região enfrentam juros altos e câmbio volátil, o que encarece o financiamento público e pressiona os programas sociais.
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Especialistas apontam que a coordenação entre Sul Global e G20 é decisiva para criar instrumentos de crédito mais justos, especialmente em setores que geram emprego, como energia limpa, saneamento e infraestrutura urbana.
“Ao invés de cortar gasto social, precisamos de mecanismos multilaterais que permitam investir de forma sustentável”, afirma Esther Dweck, ministra da Gestão e do Planejamento do Brasil, que defendeu em Washington a criação de um fundo de liquidez para emergentes.
A falta de uma solução coordenada pode ampliar as desigualdades globais e travar o crescimento em regiões que mais precisam de investimento. Como resumiu Patricia Miranda, da Latindadd: “O contexto é tão duro que não dá mais para esperar — precisamos de uma inflexão agora”.
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