Brasília — O Brasil está dividido por mais do que preferências partidárias. Entre os que veem a fé como guia moral e os que confiam no conhecimento como forma de justiça social, formou-se uma fronteira cultural que separa o país em dois modos de vida. Uma pesquisa conduzida pelo think tank More in Common em parceria com a Quaest, feita com dez mil brasileiros, mostra que o contraste entre progressistas e patriotas não é apenas político, mas estrutural — um retrato de classes, valores e repertórios distintos que atravessam a vida pública e privada do país.
Os progressistas militantes representam apenas 5% da população, mas compõem o grupo mais escolarizado, urbano e economicamente privilegiado. Segundo o estudo, 53% têm ensino superior, 37% têm renda acima de R$ 10 mil, e 41% não se declaram religiosos.

Também são o único segmento que se define majoritariamente como progressista e que expressa forte simpatia por partidos de esquerda, principalmente PT e PSOL. Essa composição revela uma esquerda de perfil mais intelectualizado e cosmopolita, distante das raízes sindicais e comunitárias que marcaram a esquerda tradicional.
Se a geração anterior se unia em torno da luta por direitos trabalhistas e políticas de redistribuição, o novo progressismo se estrutura a partir de pautas identitárias, ambientais e de costumes.
Esse deslocamento de eixo — do econômico para o cultural — ajuda a explicar por que o discurso progressista perdeu parte da conexão com o eleitorado popular. As causas de gênero, raça e sexualidade, ainda que legítimas, exigem repertórios de linguagem e referência que se formam majoritariamente nas universidades e nos grandes centros urbanos.
Em contrapartida, temas ligados à segurança, à família e à fé continuam sendo os que mais mobilizam as camadas médias e baixas da população. O resultado é um progressismo de classe média alta, centrado no capital educacional, e um conservadorismo que se consolidou como expressão do senso comum.
“O progressismo militante está isolado socialmente. Algumas de suas opiniões são muito distantes do resto da população”, afirma Pablo Ortellado, diretor do More in Common e um dos autores da pesquisa.
Enquanto os progressistas se apoiam na linguagem dos direitos e da justiça social, os patriotas indignados, grupo que reúne 6% dos brasileiros, organizam sua visão de mundo em torno de valores morais e religiosos.
O levantamento mostra que 38% são evangélicos e 41% católicos, e que 49% consideram importante participar de manifestações políticas. Ao contrário da elite progressista, que se informa majoritariamente por jornais e estudos científicos, os patriotas têm como principais fontes de informação o WhatsApp e o YouTube.

A fé atua como eixo de coesão e identidade para esse grupo, reforçando a ideia de pertencimento a um “povo moral” que vê na religião a base da ordem social.
“Esse isolamento, combinado com uma disposição populista na sociedade, cria apoio social para o discurso de que as elites intelectuais estão tentando impor valores progressistas a um povo que seria essencialmente conservador”, diz Ortellado.
O contraste entre os dois grupos aparece também nas respostas a temas práticos. Menos de 30% dos progressistas concordam que menores infratores devem ser presos, enquanto entre os conservadores o índice chega a quase 100%.
Apenas 5% dos progressistas acreditam que os direitos humanos atrapalham o combate ao crime, contra percentuais próximos de 90% entre os patriotas. Na educação, só 20% dos progressistas apoiam escolas militares, enquanto entre os conservadores o apoio passa de 80%.
Essas diferenças, porém, não expressam apenas divergência ideológica, mas a distância entre duas experiências de vida. Nos segmentos populares, a religião oferece um senso de estabilidade e pertencimento em meio à incerteza econômica; nas camadas mais instruídas, a crença se desloca para as instituições e para a confiança no Estado como promotor de igualdade.
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Os dados mostram que a educação e a renda moldam não apenas opiniões, mas identidades políticas. O avanço do ensino superior e da circulação cultural global formou um grupo que se enxerga como portador de valores universais e críticos da tradição.
Do outro lado, o conservadorismo popular ganhou densidade e autoestima política, ao se ver como guardião de uma moral ameaçada. Essa inversão simbólica fez com que o discurso de “povo contra elites” migrasse da esquerda para a direita, ancorado no populismo cultural.
“A direita brasileira é muito populista cultural. Ela se constrói politicamente sobre a ideia de que há uma elite distante das crenças populares”, diz Ortellado.
A pesquisa também identificou uma maioria que se mantém fora da polarização. Desengajados e cautelosos somam 54% dos brasileiros e compartilham desconfiança das elites, tanto econômicas quanto intelectuais.
São pessoas de baixa renda e escolaridade, com pouca identidade partidária, que votam mais por pragmatismo do que por convicção ideológica. Nesse cenário, a disputa política se alimenta das extremidades: de um lado, o progressismo que fala a linguagem da razão; de outro, o conservadorismo que comunica pela fé e pelos valores familiares.
Entre as duas pontas, o país expõe o limite de sua própria coesão. A elite progressista fala em diversidade e direitos, mas é percebida como distante; o campo conservador reivindica autenticidade popular, mas tende a excluir quem pensa diferente.
No fundo, ambos refletem a fragmentação de um país que deixou de compartilhar uma narrativa comum. O que separa progressistas e patriotas, mais do que o voto, é a forma de interpretar o que é justo, verdadeiro e sagrado.