Maria Corina

O início da história de Maria Corina Machado se confunde com o fim de uma era na Venezuela. Nos anos 1990, o país ainda vivia sob o peso de um modelo político que alternava crises econômicas, escândalos de corrupção e descrédito das instituições.

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As promessas de desenvolvimento do petróleo haviam se esgotado, e o sistema partidário que sustentara a democracia desde 1958 se fragmentava diante de uma população cada vez mais empobrecida. Nesse ambiente de desgaste, surgiria Hugo Chávez, o tenente-coronel que transformaria a retórica da insatisfação em força política de massas.

Maria Corina cresceu no lado oposto dessa história. Nascida em 1967, filha do engenheiro Henrique Machado Zuloaga e neta de um dos fundadores do grupo siderúrgico Sivensa, formou-se em engenharia industrial pela Universidad Católica Andrés Bello, uma das mais tradicionais de Caracas.

A trajetória profissional inicial seguiu o roteiro da elite técnica venezuelana: cargos em empresas familiares, experiência em gestão e convicção liberal sobre o papel do Estado. Sua formação nos círculos empresariais e acadêmicos de Caracas moldou a visão de mundo que mais tarde entraria em choque com o discurso revolucionário do chavismo.

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O ano de 1998 representou uma inflexão histórica. Com o colapso dos partidos tradicionais, Chávez venceu as eleições prometendo refundar o país em nome do povo. Enquanto a população pobre via no ex-militar uma chance de romper com décadas de desigualdade, parte da classe média reagia com desconfiança.

Para muitos empresários, o novo presidente simbolizava incerteza jurídica e risco de estatização. Foi nesse cenário que Maria Corina começou a transitar do ambiente corporativo para a arena cívica.

Em 2002, quando o país enfrentou uma greve geral e um breve golpe de Estado, Machado criou, ao lado de outros profissionais, a organização não governamental Súmate, dedicada à observação eleitoral e à promoção da transparência.

O objetivo declarado era técnico, mas, no contexto político da época, tornou-se imediatamente interpretado como gesto de oposição.

Maria Corina

“Foi um movimento cívico que desafiou o governo usando as próprias regras eleitorais”, observou a historiadora Margarita López Maya, professora da Universidade Central da Venezuela, em entrevistas à BBC Mundo.

A Súmate ganhou notoriedade ao liderar a coleta de assinaturas que viabilizou o referendo revogatório contra Chávez em 2004. A vitória do governo no pleito, confirmada pelo Conselho Nacional Eleitoral, consolidou o chavismo como força dominante — e marcou Maria Corina como inimiga pública do regime.

“O referendo foi o momento em que o chavismo entendeu que precisava controlar todos os espaços institucionais”, analisou o cientista político Luis Vicente León, do instituto Datanálisis, em reportagem da Reuters à época.

A relação entre ela e Chávez seria de confronto aberto. Em cadeia nacional, o presidente a acusou de trair o país por aceitar recursos da National Endowment for Democracy, entidade americana de apoio à democracia.

Para o governo, era prova de ingerência externa; para a oposição, um ataque à liberdade de associação. A partir dali, o nome de Maria Corina passou a circular na imprensa internacional como símbolo da resistência civil, mas também como alvo fácil de críticas.

O governo restringiu as atividades da Súmate, processou seus dirigentes e iniciou uma campanha sistemática de deslegitimação.

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“O chavismo construiu seus inimigos para sobreviver”, disse León anos depois ao El País. “Maria Corina era a antagonista perfeita: burguesa, liberal, assertiva.”

Apesar das pressões, Machado decidiu formalizar a militância. Em 2010, elegeu-se deputada pela Assembleia Nacional, representando o estado de Miranda. Sua passagem pelo Parlamento foi breve e tensa.

Dois anos depois, em discurso transmitido ao vivo, ela chamou Chávez de “ladrão” durante uma sessão, o que resultou na suspensão de seu mandato. A cena virou um marco da oposição, mas também reforçou a imagem de uma liderança combativa e isolada.

“Ela nunca foi pragmática”, avaliou Colette Capriles, professora da Universidad Simón Bolívar, em entrevista ao New York Times. “É uma política de convicções, mas de pouca capacidade de negociação.”

A morte de Hugo Chávez, em 2013, não trouxe a abertura esperada. Nicolás Maduro, seu sucessor designado, manteve o aparato político e militar do chavismo, aprofundando o controle sobre o Estado.

Para Maria Corina, a nova etapa significava o exílio interno: vigilância constante, restrição de viagens e o cerco jurídico. Em 2014, após participar de manifestações de rua, teve o mandato cassado sob acusação de conspirar contra a segurança nacional.

Maria Corina
Imagem: Gazeta do Povo

Foi impedida de deixar o país e passou a atuar em espaços paralelos, mantendo contato com diplomatas estrangeiros e organizações de direitos humanos. “A Venezuela atravessava um processo de militarização da política”, afirmou o pesquisador Phil Gunson, da ONG International Crisis Group, em relatório de 2014. “A repressão à oposição não era episódica — era parte do novo desenho institucional.”

Nesse contexto, o discurso liberal, centrado na propriedade privada e no livre mercado, a distanciava de parte da oposição, que preferia uma retórica social mais próxima ao eleitorado popular. Mesmo entre adversários de Maduro, havia quem visse Maria Corina como expressão de uma elite incapaz de compreender o drama das periferias.

“Ela representa um liberalismo clássico num país onde o Estado sempre foi visto como salvador”, analisou o economista Asdrúbal Oliveros, da consultoria Ecoanalítica, em entrevista à BBC Mundo.

Durante os anos seguintes, a economia venezuelana mergulhou em colapso. A dependência do petróleo, as sanções internacionais e a fuga de capitais corroeram a base produtiva do país. A hiperinflação passou a ser medida em milhões por cento, e o êxodo populacional se tornou um dos maiores da história recente da América Latina.

Enquanto isso, a figura de Maria Corina permanecia como ponto fixo na paisagem da oposição — uma voz que denunciava abusos, mas sem estrutura política suficiente para oferecer alternativa viável de poder.

“O chavismo destruiu o espaço do debate”, disse Tamara Taraciuk Broner, pesquisadora da Human Rights Watch. “E a oposição se tornou reativa, sobrevivendo em torno de figuras que o regime escolhe como adversárias.”

Em meio à deterioração institucional, ela continuou articulando redes de apoio no exterior. Em 2015, foi convidada a falar na Organização dos Estados Americanos sobre a crise venezuelana.

O governo reagiu retirando seu passaporte e ampliando as restrições. Ainda assim, o nome de Maria Corina começou a circular em relatórios de entidades internacionais de direitos humanos, que apontavam violações sistemáticas contra opositores.

“Ela é o rosto mais visível de um processo que afeta milhares de pessoas anônimas”, afirmou o jornalista Ewald Scharfenberg, editor do site investigativo Armando Info.

A essa altura, a polarização já havia se transformado em um modo de existência nacional. O chavismo, que nascera como promessa de inclusão, tornara-se um sistema fechado em torno da lealdade pessoal.

A oposição, fragmentada, alternava entre o cansaço e a tentativa de reorganização. Nesse contexto, Maria Corina encarnava o paradoxo de uma liderança sem espaço político, mas com projeção simbólica. O antagonismo com o regime moldou não apenas sua imagem, mas também o discurso do governo.

Em transmissões oficiais, Maduro e seus ministros frequentemente usavam seu nome como exemplo de “burguesia conspiradora”, enquanto fora do país ela era recebida como porta-voz da democracia. Essa dualidade — adoração externa e isolamento interno — se tornaria uma das marcas de sua trajetória.

A primeira metade dos anos 2010 consolidou o esgotamento das duas promessas que marcaram a Venezuela contemporânea: a revolução bolivariana, que já não entregava prosperidade, e a oposição liberal, que não conseguia mobilizar a maioria.

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Entre elas, a população comum buscava sobreviver à escassez, ao racionamento e à migração em massa. Maria Corina, mais do que uma política, tornou-se uma personagem da resistência. Sua história sintetiza a transição da Venezuela do sonho de soberania popular para a realidade de um Estado em colapso.

O país que Chávez prometera refundar havia se tornado o cenário de uma disputa permanente entre poder e liberdade — e, nesse tabuleiro, a figura de Machado seria, ao mesmo tempo, peça central e prisioneira do próprio jogo.

Nos anos seguintes, a convivência entre poder e medo se tornaria a base do Estado venezuelano. O controle das instituições, a censura e o cerco à oposição fariam da política um território de vigilância.

É nesse ambiente, já sob Nicolás Maduro, que começa a segunda fase da história de Maria Corina — a da resistência sob um regime que aprenderia a transformar a repressão em método de governo, como veremos no segundo capítulo desta reportagem.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e política internacional, dedicado a interpretar como o poder e os mercados influenciam o Brasil e o mundo.

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