Crise política na França

A França mergulhou numa nova crise institucional após a renúncia, em 6 de outubro, do primeiro-ministro Sébastien Lecornu — menos de um mês no cargo e horas depois de anunciar o gabinete. Sem maioria na Assembleia Nacional desde as legislativas de 2024, o presidente Emmanuel Macron encarregou o premiê demissionário de conduzir conversas de emergência por 48 horas para tentar evitar a dissolução do Parlamento.

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Como a França chegou até aqui

A raiz da crise está no Parlamento fragmentado que emergiu da eleição antecipada de 2024: três blocos relativamente equilibrados — extrema-direita (Reagrupamento Nacional, RN), esquerda (NFP/Nouvelle Front Populaire) e o centro de Macron — incapazes de formar uma maioria estável.

Nesse tabuleiro, Lecornu tornou-se o quinto primeiro-ministro a cair em menos de três anos, um recorde na Quinta República.

Crise Política na França

A gota d’água foi a combinação de um orçamento impopular e escolhas ministeriais contestadas, que fragilizaram o apoio parlamentar antes mesmo do primeiro grande teste de confiança. Macron, que nomeou Lecornu em 9 de setembro para sinalizar “continuidade” e experiência (ele era ministro da Defesa), viu o plano ruir em semanas.

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A renúncia de Lecornu — a mais rápida da história recente — evidenciou a inviabilidade de governar por minoria na atual correlação de forças.

O desgaste respinga no presidente: pesquisas mostram que três quartos dos franceses consideraram correta a saída do premiê e quase metade atribui a Macron a responsabilidade pela turbulência.

Ex-aliados, como o ex-premiê Édouard Philippe, passaram a defender publicamente eleições antecipadas — ou até a renúncia do presidente, hipótese que Macron rejeita.

O que está em jogo

A crise ocorre com déficit orçamentário próximo ao dobro do limite europeu e dívida elevada, o que reduz a margem para concessões fiscais e pressiona a necessidade de um orçamento crível.

O impasse político contaminou os mercados: CAC 40 e euro recuaram após a queda do governo. Em paralelo, duas sondagens recentes indicam que, se houver novas eleições, o RN sairia como bloco dominante — ainda que sem maioria absoluta —, prolongando a paralisia.

Para a União Europeia, a instabilidade em sua segunda maior economia complica discussões de regras fiscais, política industrial e energia.

Para parceiros e investidores, o risco é de orçamentos provisórios e reformas travadas, ampliando prêmio de risco francês e testando a coesão do bloco num momento de crescimento fraco.

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Cenários possíveis: das “saídas técnicas” ao risco de urnas

1) Acordo mínimo e novo/mesmo premiê

Macron deu a Lecornu 48 horas para sondar um pacto de sobrevivência: um governo “de competências” ou compromissos temáticos (orçamento, Europa, defesa) em troca de concessões legislativas.

Seria um governo minoritário tolerado por parte da oposição (abstenções estratégicas) para aprovar o essencial. É a via menos traumática, mas politicamente frágil — dependeria de disciplina parlamentar improvável.

2) “Tecnocrata” para aprovar o orçamento

Outra hipótese é um primeiro-ministro técnico com mandato curto, focado em orçamento e reformas pontuais. Essa fórmula já foi usada em outros países europeus, mas na França enfrentaria o mesmo bloqueio: sem votação de confiança clara, qualquer PM técnico dependeria de abstenções negociadas caso a caso.

3) Dissolução e novas eleições legislativas

É a solução mais ventilada por opositores e até por ex-aliados. Pesquisas sugerem avanço do RN, mas sem maioria. O resultado provável seria novo impasse, com o risco adicional de legitimar ainda mais os extremos e enfraquecer o centro de Macron, que continua presidente até 2027. O Palácio do Eliseu trata essa opção como último recurso.

4) Renúncia do presidente (muito improvável)

Constitucionalmente possível, politicamente remota. Macron descarta sair antes de 2027, mas a mera discussão amplia a sensação de vazio de poder.

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O que observar nos próximos dias

Negociações de 48 horas — Macron deu a Lecornu dois dias para costurar um acordo mínimo que evite a dissolução do Parlamento. A esquerda sinaliza resistência, mas parte dos socialistas admite tolerar um governo de transição para evitar novas eleições. À direita, o Reagrupamento Nacional (RN) aposta no desgaste do governo e mantém pressão pelas urnas.

Mercados em alerta — As próximas sessões da Bolsa de Paris (CAC 40), os spreads da dívida francesa e o euro serão o termômetro da confiança dos investidores. Cada recuo acentuado tende a reforçar a percepção de que o impasse político pode se transformar em crise econômica.

Orçamento e calendário político — O governo precisa aprovar o orçamento antes do fim de outubro, sem base sólida para isso. Qualquer tentativa de empurrar um texto provisório aumenta o risco de derrota e pode forçar Macron a recorrer a medidas excepcionais, com alto custo político.

O fator RN — Pesquisas mostram o partido de Marine Le Pen à frente, mas ainda sem maioria absoluta. Se o cenário se consolidar, a dissolução do Parlamento se tornará ainda mais perigosa para Macron, que ficaria encurralado entre a paralisia legislativa e o avanço da extrema-direita.

Crise política na França

Em resumo

A renúncia relâmpago de Lecornu não é um evento isolado, mas o sintoma de uma geometria política inviável.

Macron tenta prolongar seu mandato por meio de acordos frágeis; a oposição força o colapso para antecipar as urnas; e os mercados cobram estabilidade.

Nas próximas semanas, a França decidirá se recompõe uma maioria de conveniência — ou se mergulha de vez em mais uma rodada de turbulência institucional.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista e redator especializado em economia, finanças e investimentos. É Administrador de Empresas com MBA em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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